Introdução
A contribuição dos títulos de crédito, na formação da economia moderna, no âmbito do direito comercial, é de vital importância para o desenvolvimento da atividade da empresa.
No presente trabalho aborda-se a origem histórica e a função econômica dos títulos de crédito, como instrumentos de circulação indireta da riqueza, que visa tornar mais simples e acessível a circulação dos bens e direitos jurídico – comercial.
Aborda-se também a evolução histórica do direito cambiário, que é o ramo do direito comercial/empresarial que trata dos títulos de crédito.
A análise das características dos títulos de crédito que são elementos essenciais para a sua constituição à luz da legislação e também os tipos de acordo com as diferentes categorias, são aspectos abordados no presente trabalho.
No que tange ao regime jurídico trata-se da relação jurídica específica, ou seja, da relação cartular e a sua tipicidade, bem como de sua desmaterialização, os títulos de crédito e títulos executivos, bem como suas diferentes categorias.
Se concluí o presente trabalho abordando de forma suscinta a questão da circulação e da reforma dos títulos de crédito.
E, ao final, os títulos de crédito no direito brasileiro, disciplinados no Código Civil, nos artigos 887 a 926, (Lei nº 10.406/10.01.2002).
1. Origem Histórica e Função Econômica
“ A origem histórica dos títulos de crédito – que, em grande medida, pode ser encontrada na letra de câmbio medieval – é ainda hoje ilustrativa da razão de ser e importância deste instituto no contexto do Direito Comercial.
No exercício da sua atividade comercial, os “mercatore” medievais, frequentemente estabelecidos em praças geograficamente distantes, eram obrigados a deslocar-se a fim de celebrarem os seus negócios, de se aprovisionarem de mercadorias destinadas a revenda, e de cobrarem os créditos respetivos. Com vista a evitar os enormes riscos inerentes a transportar consigo avultadas quantias de dinheiro nas suas longas viagens por caminhos inseguros, foi despontando um novo e original instituto jurídico: o comerciante depositava o seu dinheiro junto de um banqueiro, que lhe entregava em troca um documento especial ou carta (“cartulae”) e que lhe permitia, mediante a sua apresentação junto de outro banqueiro sediado no local de destino ou de negócio, aí levantar a correspondente quantia pecuniária, necessária aos pagamentos; mais tarde, tornou-se mesmo possível que tal documento fosse utilizado pelo comerciante como meio direto de pagamento e de circulação de créditos no tráfico jurídico, mediante o seu mero endosso a outros comerciantes, que assim assumiam a titularidade do crédito pecuniário nele inscrito.
Os títulos de crédito são assim fundamentalmente, da sua origem à atualidade, instrumentos de circulação indireta da riqueza, destinados a tornar mais simples, rápida e segura a movimentação de bens e direitos no tráfico jurídico-comercial. Tal significa dizer que, ao lado das formas tradicionais de circulação da riqueza (a entrega do dinheiro, a transmissão de uma mercadoria, a cessão ordinária de um crédito), os títulos de crédito surgem como uma forma indireta e alternativa dessa circulação: o dinheiro, mercadoria, ou crédito, no lugar de circularem diretamente, são titulados ou representados em documentos em que seguem um regime próprio de circulação. Esta modalidade alternativa de titularidade e circulação de riqueza tem significativas vantagens de simplicidade, celeridade e segurança nas transações comerciais”. [1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 10-11.
2. Evolução Histórica Geral do Direito Cambiário
“Na denominação obrigação cambiária, o seu último termo – cambiária – pela palavra de que deriva (câmbio = troca; permuta), remonta a sua origem ao câmbio internacional de moedas em que, segundo tudo leva a crer, mergulharão as mais fundas raízes da sua formação histórica, da qual, de acordo com estudos notáveis dos especialistas, se notam já, na antiguidade oriental e clássica, traços salientes, quando mercadores e viajantes, para evitar o risco de levarem moeda consigo, se fazerem acompanhar de ordens de pagamento que seriam satisfeitas em moeda das praças de destino. Semelhantes ordens de pagamento tinham, de resto, atrás de si, os velhos instrumentos de confissão de dívida do Direito antigo: a época (que o latim assimilou do grego αποχη), era a genérica designação de um escrito em que se registrava o recebimento de uma quantia e a obrigação do seu pagamento pelo devedor, e as suas subcategorias – o síngrafo (do grego, δινγραφον), que designava o documento particular em que o devedor, conjuntamente com o credor e mesmo outras pessoas, para maior segurança, afirmavam o recebimento de certa importância e a obrigação do respectivo pagamento, e o quirógrafo (ainda do grego, χξιρδγραφν), que constituía um manuscrito em que o devedor, só por si, reconhecia ter recebido um dado montante e se declarava obrigado ao seu pagamento. Com estes antecedentes, quanto aos quais a raiz etimológica das designações, parece denunciar muito claramente a sua vetustez, e naquele caldo de cultura, ocorrerá naturalmente o passo ulterior da evolução, surgindo assim o cambium per literas, onde, com a documentação de uma dívida num escrito, se legitima o portador a exercer o respectivo crédito mediante a apresentação do escrito ao destinatário, na sua praça e na sua moeda.
O instituto não desaparece com a queda do Império Romano do Ocidente, antes subsiste, desenvolve-se e evolui nos tempos seguintes, sob o influxo de particulares situações e factos históricos que multiplicam o seu uso e lhe modelam novas formas e aplicações.
[…]
Na sua estrutura assinalam-se então, como seus elementos bem demarcados, a distancia loci, a diversitas pecunia, o valor recebido e a provisão. A sua história começa, a dada altura, a identificar-se com a de um particular título de crédito – a livrança – que é assim a primeira espécie moderna a desenhar-se no curso do tempo – só depois seguida por outras espécies que vão surgindo, em que avultará a letra de câmbio, a mais completa e desenvolvida, aquela que é hoje, sem favor, o verdadeiro arquétipo dos títulos de crédito.
[…]
De acordo com GOLDSCHMIDT, a letra de câmbio, em si, começa a desapontar no firmamento jurídico à ilharga dos seus precursores instrumentos documentadores do negócio cambiário, quando se constituem documentos em forma de letra, isto é, documentos particulares onde o devedor ordena ou convida um seu representante ou correspondente a pagar a soma antes recebida em câmbio.
Está será a letra primitiva, que não poderá considerar-se ainda um verdadeiro instrumento cambiário, porque lhe falta a cláusula cambiária que permitiria obter uma ação de regresso contra o sacador.
Semelhante elemento só terá surgido no curso do séc. XIV, quando a letra começa a difundir-se no comércio e vem a suplantar a importância da própria livrança.
O novo passo que surge na evolução histórica do instituto dá-se quando começa a apor-se no dorso da letra uma ordem de pagamento da quantia nela representada, a pessoa diferente do credor fixado com a emissão, isto é, quando através de tal declaração se utiliza o mesmo instrumento para, através dele, se transferir a titularidade do direito à prestação para terceiro.
É o endosso que nasce. O endosso, da expressão francesa au dos, a operar a circulação da carta, através de uma ordem de pagamento exprimida pelo respetivo titular em favor de outra pessoa”.[1]
O Código de Comércio Francês de 1807 passou a dispor sobre a circulação das cambiais, facilitando a sua difusão prática.
[1] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 16-19.
3. A Evolução Portuguesa
“Em Portugal, os primeiros subsídios históricos de que dispomos dão-nos conta do uso de duas livranças nos primórdios do séc. XIV, ambas passadas em tabelião da cidade do Porto, uma redigida em latim, datada de 1301 e revelada em 1914 por MOSES AMZALAK, e outra escrita em português da época, datada de 1307 e revelada por PAULO MERÊA.
Uma e outra constituem confissão de dívida que se promete pagar até certa data, ao credor “ou a quem este prazo mostrar”, segundo a expressão da última, que é análoga à da primeira e encerra a tradicional cláusula alternativa ao portador (“tibi aut cui hoc scriptum in manu paruerit”).
No plano legislativo, os primeiros elementos remontam às Ordenações Afonsinas, a propósito exatamente da proibição da usura.
No §1 do tít. 19 do seu livro IV, depois de se estabelecer que ninguém dê ou receba dinheiro, prata ou ouro “ou qualquer quantidade pesada, medida ou contada a usura”, excetua-se expressamente o “ganho (gaança) de dinheiro ou quantidade de todo o caso de câmbio (cambo) de um Reino ou lugar para outro”.
O elemento distantia loci do câmbio de praça a praça é libertado da proibição oposta à usura, afirmando-se ainda no §6 do mesmo título que a licitude de semlhante convenção só seria considerada quando se desse maior quantidade num lugar para se pagar uma menor noutro.
As Ordenações Manuelinas reproduziram estas disposições (liv. IV, tít. 14, §5)
A lei de 16 de janeiro de 1570 parece marcar um retrocesso relativamente ao sistema das Ordenações – pois, intensamente dominada pelo propósito de combate à usura, determina que ninguém dê dinheiro a câmbio para feiras ou lugares de Portugal ou estrangeiro.
Não passou ela, todavia, para as Ordenações Filipinas, que se limitaram a reproduzir as normas constantes das Ordenações precedentes (livro IV, tít. 67, §§ 5 e 6), revelando embora uma maior preocupação na condenação da usura, ao impor expressamente a igualdade entre o valor do numerário e o das letras ou livranças (liv. IV, tít. 67, § 7).
Semelhante atitude legislativa é no entanto modificada, já no séc XVIII, quando o Alvará, de 6 de agosto de 1757, veio permitir, entre nós, a cobrança de juros, entendidos estes como o legítimo aluguer ou renda do capital.
Uma nova conceção da realidade vai permitir, assim, como o assento da Real Junta de Comércio, confirmado pelo Alvará de 16 de janeiro de 1793, a consagração legal das chamadas letras da terra, que vinham sendo aliás praticadas na praça de Lisboa já desde os finais do séc. XVII.
Cumpre-se deste modo uma importante fase na evolução portuguesa, eliminando dos títulos cambiários o tradicional requisito da distantia loci.
Na mesma orientação, o Código Comercial de 1833, de FERREIRA BORGES, que contém já uma desenvolvida disciplina da letra e da livrança, distingue da primeira as letras da terra, que se definem aí como escritos em forma de letra de câmbio, passados e aceitos na mesma praça (art. 435).
Tais escritos só constituíam, no entanto, atos de comércio, funcionando então como verdadeiras letras de câmbio, por equiparação, quando fossem exarados à ordem (art. 436) e passados por comerciante, ou por não comerciante que se obrigou em consequência de operações comerciais, tráfico, câmbio, banco ou corretagem (art. 438).
Sem estes requisitos constituiram meras promessas de pagamento, sujeitas à lei civil (art. 437).
Só em 1850, com a Lei de 27 de julho do mesmo ano, veio a desaparecer, para as letras da terra, a exigência da sua relação com um ato de comércio, para se poderem equiparar à letra de câmbio.
É este, fundamentalmente, o estado do problema quando em 1888 surge o Código de VEIGA BEIRÃO – e pode dizer-se que a nova disciplina que introduziu, para as letras, livranças e cheques, no tít. VI do seu livro II (arts. 278 a 343), fortemente inspirada na Wechselordnung, representou um enorme progresso em relação à época anterior.
O mesmo Código, aliás, não se ficou por aqui, estatuindo ainda dois artigos – os 483 e 484 – a fechar o livro II, no seu tít. XX, uma breve disciplina dos títulos de crédito, em geral.
No primeiro dos preceitos estabelece a forma da sua circulação, distinguindo:
- – Os títulos à ordem, que se transmitirão por endosso;
- – Os títulos ao portador, que se transmitirão pela entrega real;
- – Os títulos públicos negociáveis, que se transmitirão na forma determinada pelo diplinma que autorizar a sua emissão;
- – Os títulos não endossáveis, que só poderão transmitir-se nos termos prescritos pelo Código Civil para a cessão de créditos.
No segundo dos mencionados preceitos, alinharam-se as normas processuais para a reforma dos títulos transmissíveis por endosso, que tenham sido destruídos ou perdidos, as quais tinham sido substituídas pelas normas dos arts. 1069 a 1073 do Código de Processo Civil, que desapareceram do Código atual a que adiante nos referiremos, quando nos ocuparmos da reforma destes títulos (v.infra, nº 25).
Em 1927, o Decreto nº 13 004, de 12 de janeiro do mesmo ano, revogou os arts. 341 e 432 do Código Comercial e estabeleceu uma disciplina bastante desenvolvida do cheque – mas em 1930 assinou Portugal, em Genebra, as duas Convenções para Leis Uniformes relativas à Letra e Livrança e ao Cheque, que foram postas em vigor em 1934 e pelas quais nos regemos atualmente.
Mais tarde, durante os trabalhos preparatórios do novo Código Civil, ainda se pretendeu incluir nele um conjunto básico de disposições reguladoras dos títulos de crédito – mas a ideia não foi por diante.
Assim, fora o preceito geral do art. 483 do Código Comercial, a disciplina jurídica das obrigações cambiárias, hoje em dia, em Portugal, tem de ser deduzida pelo intérprete como o lugar geométrico das particulares regulamentações postas para cada um dos diferentes escritos que, pela sua natureza e regime, possam ser considerados como títulos de crédito.
A bem dizer, não há, entre nós, uma categoria legal, a priori, com semelhante designação; há apenas certos títulos concretos que, pelos seus caracteres, podemos em construção dogmática enquadrar naquela categoria abstrata a que, segundo a terminologia mais generalizada, podemos chamar de títulos de crédito”.[1]
[1] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 21-24.
4. Características
O título de crédito é definido como sendo o documento necessário para constituir, exercer e transferir o direito literal e autónomo nele incorporado.
Assim, podemos citar como características ou elementos distintivos deste instrumento juscomercial: documento, direito, incorporação, literalidade e autonomia.
Tais características deverão ser analisados em sentido amplo e abstrato.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 12-13.
4.1. Documento
“O título de crédito é, desde logo, um documento (art. 368.º do CCivil). Todavia, atenta a particularíssima relação que intercede entre o documento e o direito documentado (adiante descrita), ele não é um documento qualquer: trata-se de um documento probatório, contitutivo e dispositivo no sentido em que, mais do que simplesmente servir para provar um direito, ele é um documento necessário para a constituição, exercício e transferência do direito documentado.
Por uma banda, ao contrário dos simples documentos declarativos (em que o documento funciona como um mero meio de prova do direito nele inscrito), o título de crédito desempenha uma função constitutiva do próprio direito: ou seja, o documento constitui em regra um pressuposto necessário do nascimento ou constituição do direito documentado. Por outra banda, ao contrário dos documentos constitutivos normais (que são apenas necessários à criação do direito, o qual, depois de nascido, pode subsistir e circular independentemente da posse do documento, v.g., escritúra pública), o título de crédito desempenha uma função dispositiva do direito documentado: ou seja, a titularidade ou posse do documento é imprescindível para que este direito possa ser exercido e, por conseguinte também, transferido.
Questão complexa e debatida é a de saber se os títulos de crédito poderão ser representados em documentos eletrônicos. A noção clássica de título de crédito encontrou-se, desde sempre, associada a documentos em suporte físico ou de papel – podendo até afirmar-se que é na incorporação ou materialização de direitos preexistentes em instrumentos documentais autónomos e circulantes que reside justamente o seu “punctum saliens”. Todavia, a emergência de um fenómeno de “desmaterialização’’ destes títulos tem levado um setor da doutrina nacional e estrangeira a sustentar um alargamento da noção clássica de título de crédito aos próprios “documentos eletrónicos”, em suporte escritural ou informático. Pense-se, por exemplo, no caso das ações, que podem ser representadas num suporte de papel (ações tituladas) ou em mero registro informático (ações escriturais) (art. 46.º, n.º 1, do CVM): segundo alguns autores, também no último dos casos estariam presentes as características gerais dos títulos de crédito, ou seja, de um documento (art. 362.º do Ccivil) em que o registro (talqualmente a posse do título) constitui o pressuposto do exercício ativo e passivo (arts. 55.º e 56.º do CVM) e da transmissão (art. 80.º, n.º 1, do CVM) dos direitos sociais, a base da delimitação do conteúdo e a extensão destes direitos (literalidade: cf. art. 74, n.º 1, “in fine”, do CVM), e o fundamento da inoponibilidade de exceções ao titular registrado de boa fé (autonomia: cf. arts. 58.º e 74.º, n.º 1, do CVM)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 14-15.
4.2. Direito Privado
“O título de crédito é, depois, um documento que incorpora direitos privados de natureza vária. Excluídos ficam assim obviamente os documentos representativos de direitos ou relações jurídico-públicos, v.g., bilhete de identidade, licenças administrativas, alvarás de construção, etc.
A expressão tradicional “títulos de crédito” poderia levar a pensar que tais documentos apenas podem incorporar ou representar direitos de crédito. Nada de menos exato.
É certo que existe uma pluralidade de títulos que incorporam direitos de crédito propriamente ditos: é o caso, por exemplo, da letra e da livrança (LULL), do cheque (LUC), do extrato de fatura (Decreto n.º 19 490, de 21 de março de 1931), dos certificados de depósito (Decreto-Lei n.º 372/91, de 8 de outubro), e das obrigações (art. 348.º e segs. do CSC, art. 1º, al. b), do CVM). Mas verdade é também que existem ainda vários outros que titulam direitos reais de propriedade ou de garantia – v.g., a guia de transporte (art. 369.º do CCom), o conhecimento de carga (art. 8.º do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de outubro, art. 3.º, n.º 3, da “Convenção de Bruxelas”, arts. 14.º e 15.º da “Convenção de Hamburgo”), e o conhecimento de depósito e a cautela de penhor (arts. 408.º e segs. do CCom) – ou mesmo direitos corporativos ou sociais – “maxime”, as ações das sociedades comerciais (arts. 298.º e segs., 478.º do CSC, art. 1.º, al. a), do CVM)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 16-17.
4.3. Incorporação
“ O título de crédito, pressupondo um documento e um direito documentado, caracteriza-se ainda pela existência de uma especialíssima relação entre ambos, que a doutrina designa tradicionalmente por “incorporação” (“Verkörperung”, “incorporazione”): o direito encontra-se “incorporado”, compenetrado ou fundido no próprio documento, de tal modo que é a posse do documento que decide da titularidade do próprio direito – falando-se por isso também, a este propósito, de um “direito cartular” (de “cartula” ou documento).
Esta característica peculiar dos títulos de crédito está no cerne da sua função própria como instrumentos alternativos de circulação da riqueza. Se o objetivo é tornar mais simples, rápida e segura a circulação dos direitos no tráfico jurídico-comercial, evitando os entraves do regime comum da cessão de créditos, então ficciona-se a incorporação ou reificação desses direitos num documento: o título de crédito passa então a constituir uma coisa móvel (“res”) que, semelhantemente aos demais bens móveis, é apta a circular célere e seguramente de mão em mão.
Semelhante incorporação tem consequênciass fundamentais no plano da disciplina dos títulos de crédito e direitos cartulares.
Para começar, a posse do documento passa a ser condição necessária e suficiente para o exercício do direito cartular, e isto num duplo sentido: a posse de um título de crédito habilita ou legitima o respectivo portador a exercer o direito nele incorporado (mesmo quando o possuidor não seja o titular do direito) e, inversamente, o verdadeiro titular do direito está impedido de o exercer se e enquanto não estiver na posse do documento (arts. 34.º e 38.º da LULL, art. 28.º da LUC). Depois, a posse do documento é também condição necessária e suficiente para o cumprimento da correspectiva obrigação cartular: o devedor desonera-se validamente desta obrigação mediante o respetivo cumprimento perante o portador legítimo do título, não tendo de indagar sobre a sua verdadeira ou material titularidade (art. 40.º, n.º 3, da LULL, art. 35.º da LUC). Finalmente, recorde-se que esta ligação entre documento e direitos e obrigações cartulares é uma ligação genética, perene e infungível: para além de o nascimento de um título de crédito estar inteiramente dependente do facto de as declarações negociais dos sujeitos cautelares serem formalizadas num documento escrito, este permanece necessário para o exercício, transmissão e cumprimento dos direitos e deveres cartulares durante toda a vida do próprio título, sendo inadmissível a substituição do documento original por qualquer outro documento ainda que absolutamente idêntico (ressalvados os casos especialíssimos de reforma, cópia ou pluralidade de exemplares, v.g., arts. 1062.º e segs. do CPC, art. 51.º da LULL, art. 49.º da LUC).
Este traço da incorporação explica assim que – como foi expressivamente formulado pela doutrina germânica há bem mais de meio século – o direito contido ou representado no documento (“Recht aus dem Papier”) passa a seguir o direito sobre o próprio documento (“Recht am Papier”).[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 17-19.
4.4. Literalidade
“Uma penúltima característica dos títulos de crédito reside na sua literalidade: o direito cartular diz-se literal no sentido em que são os dizeres ou o teor literal do documento (“litteris”) que definem e delimitam exclusivamente o respetivo conteúdo.
A literalidade dos títulos de crédito comporta duas consequências fundamentais – que são como que as faces de uma mesma moeda.
Pela positiva, ela significa que o conteúdo, extensão e modalidades do direito cartular são aqueles que decorrem das declarações objetivas constantes do título. Como melhor veremos adiante, a respeito de cada título em particular, o legislador estabeleceu um conjunto de menções formais que devem obrigatoriamente constar do documento ou “corpus mechanicum” do título, sob pena de o mesmo não produzir os seus efeitos próprios: assim, por exemplo, um cheque deverá conter necessariamente um conjunto de indicações (v.g., a palavra cheque inserta no documento, o mandato puro e simples de pagamento de quantia determinada, o nome do sacado, a indicação do lugar do pagamento, da data e do lugar do saque, a assinatura do sacador: cf. art. 1.º da LUC), sendo que, na falta de alguma delas, o documento “não produz efeito como cheque” (art. 2.º, n.º 1, da LUC).
[…]
Esta característica da literalidade, todavia, não é absoluta, devendo ser entendida “cum grano salis”. Desde logo, advirta-se que a sua intensidade ou alcance não é idêntica em todos os títulos de crédito, podendo existir casos de literalidade meramente indireta ou “implícita”.
Se ela é praticamente total ou direta nos chamados títulos abstratos (v.g., letras, livranças, cheques, extratos de fatura), já se apresenta mitigada no caso dos títulos causais, que se encontram ligados a uma causa negocial específica: assim, por exemplo, as ações são títulos dotados de uma literalidade indireta ou por referência, na medida em que, no lugar de mencionarem exaustivamente todos os direitos e deveres cartulares de acionista e sociedade emitente, se limitam a uma remissão genérica e implícita para o contrato de sociedade (art. 276.º do CSC). Por outro lado, o alcance da literalidade pode também ser diferente dentro de um mesmo tipo de título de crédito, podendo exsistir casos de literalidade meramente parcial: assim, designadamente, as convenções e exceções extracartulares, sendo irrelevantes perante os terceiros ou portadores mediatos de boa fé, já são invocáveis nas relações entre os sujeitos cartulares imediatos (art. 17.º da LULL, art. 22.º da LUC, art. 375.º do CCom, “a contrario sensu”)”. [1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 20-23.
4.5. Autonomia
“Uma última e relevantíssima característica dos títulos de crédito reside na sua autonomia – aliás, de alcance dúplice: o portador legítimo do título é, simultaneamente, titular de um direito cartular autónomo (relativamente aos negócios subjacentes) e de um direito autónomo sobre o próprio título (relativamente aos portadores anteriores).
No primeiro dos sentidos (autonomia do direito cartular), tal significa dizer que o direito do portador do título é um direito autónomo ou independente em face do ou dos negócios fundamentais que lhe estiverem na origem.
Como é evidente, os títulos de crédito não nascem “ex nihilo” no tráfico comercial, tendo a si normalmente subjacente uma determinada causa ou negócio jurídico fundamental que justamente explica a sua emissão ou circulação (v.g., compra e venda, mútuo, depósito, transporte). Ora, afirmar que o direito cartular é um direito independente do direiro subjacente ou fundamental vale por dizer que se trata de direitos distintos – sujeitos a regimes próprios (v.g., em sede de regras de exercício, transmissão, prescrição, cumprimento) -, não podendo ser opostos ao portador do título as exceções decorrentes desse negócio fundamental (arts. 17.º e 77.º da LULL, art. 22.º da LUC): assim, por exemplo, se A compra um imóvel a B, saldando a sua dívida através da emissão de um cheque a favor do vendedor que, posteriormente, o endossa a um terceiro C, não será lícito a A recusar o respetivo pagamento perante o portador C opondo-lhe a inexistência (não houve qualquer compra e venda), a nulidade (v.g., falta de escritura pública ou documento particular autenticado), ou a exceção de não-cumprimento do negócio (v.g., B ainda não lhe entregou o imóvel).
No segundo dos sentidos atrás referidos (autonomia do direito sobre o título), tal significa dizer que o direito do portador sobre o próprio título de crédito é um direito autónomo ou independente em face dos direitos dos portadores anteriores.
[…]
Nos termos do regime geral da lei civil, se o proprietário de um bem dele for ilegitimamente desapossado, poderá reivindicá-lo de qualquer terceiro a quem o mesmo haja sido entretanto trasmitido pelo desapossessador, já que a falta de legitimidade deste sempre inquinaria todas as alienações posteriores “a non domino” (de acordo com o brocardo “nemo plus iuris”). Ora, é exatamente oposto o regime dos títulos de crédito, onde cada portador do título que legitime a sua posse de acordo com as respetivas leis de circulação é havido como titular de um direito autónomo ou nascido “ex novo” nas suas mãos, sendo-lhe inoponíveis as exceções procedentes de posses ou portadores anteriores do mesmo título (art. 16.º da LULL, art. 21.º da LUC): assim, por exemplo, se A emite um cheque ao portador a favor de B, que lhe é entretanto furtado por C, o qual (seja mediante nova tradição manual, seja mediante endosso após se inscrever como beneficiário do mesmo) o transmite por sua vez a D, que nada sabe do que se passou, a posse do portador atual D prevalecerá sobre a do portador originário B, não lhe sendo oponível a ilegitimidade do portador intermédio C”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7.p. 24-26.
5. Tipologias
“Os títulos de crédito podem ser agrupados ou classificados em diferentes categorias. Recorrendo aqui aos principais critérios classificatórios propostos na doutrina nacional e estrangeira, será possível elencar as seguintes tipologias fundamentais: títulos privados e públicos (critério da natureza do emitente); títulos creditícios, reais ou corporativos (critério da natureza do direito cartular); títulos nominativos, à ordem ou ao portador (critério do modo de circulação); títulos abstratos e causais (critério do nexo com o negócio subjacente); e títulos em massa e individuais (critério do modo de emissão).
[…]
Os títulos de crédito são simultaneamente documentos de legitimação (destinados a habilitar o seu portador ao exercício do direito cartular) e de circulação (destinados a permitir a fácil, célere e autónoma transmissão desse direito). De fora, em regra, ficarão assim os chamados “títulos impróprios”, que são meros documentos de legitimação que, não se destinando à circulação, carecem de alguma das características habituais dos títulos de crédito (mormente, incorporação e autonomia). Estes títulos podem consistir em meros “comprovativos de legitimação” – que têm por função exclusiva legitimar o seu portador, vedando em absoluto a sua própria circulação (v.g., bilhete de avião, cartão de débito, passe de transporte coletivo) – ou em “títulos de legitimação” – que têm por função primordial legitimar o seu portador a exercer um determinado direito nele contido, mas não a fazer circular ou transmitir tal direito, embora não o impeçam (v.g., bilhete de lotaria, bilhete de ingresso numa sessão de cinema ou teatro, vale do correio, senha do vestiário, etc.)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7.p. 26-27.
5.1. Títulos Privados e Públicos
“Os títulos públicos são aqueles que são emitidos pelo Estado ou por outras entidades públicas legalmente habilitadas para tal no exercício de uma atividade pública: é o caso, por exemplo, das notas de banco, dos bilhetes do Tesouro, ou, genericamente, dos títulos de dívida pública (a que o art. 483.º do CCom se refere como “títulos públicos negociáveis”). Os títulos privados são os emitidos por pessoas singulares ou coletivas privadas, ou por entidades públicas no exercício de uma atividade privada: é o caso das letras de câmbio, das livranças, dos cheques, das obrigações, ou dos extratos de fatura.
O critério da natureza pública ou privada do emitente não implica necessariamente que todos os títulos emitidos pelo Estado ou entidades públicas no exercício das suas funções próprias sejam títulos públicos: assim, o cheque não perde a sua natureza tipicamente privada ainda quando seja utilizado por aqueles como meio de pagamento no âmbito do exercício de funções públicas (v.g., pagamento de salário de funcionários)”. [1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 27-28.
5.2. Títulos Creditícios e Corporativos
“Os títulos creditícios (também designados títulos representativos de moeda) são aqueles que incorporam exclusivamente um direito de crédito a uma prestação pecuniária: é o caso, por exemplo, das letras de câmbio, livranças, cheques, extratos de fatura, certificados de depósito e obrigações. Os títulos reais (também designados títulos representativos de mercadorias) são aqueles que incorporam direitos reais sobre coisas, em geral mercadorias: é o caso das guias de transporte e conhecimentos de carga – que conferem ao seu titular, além de um direito a exigir a respetiva entrega no local de destino, também um direito real de disposição sobre as mercadorias transportadas – e ainda dos conhecimentos de depósito e anexa cautela de penhor (ou “warant”) – que conferem ao seu titular, além do direito à restituição, um direito real de garantia sobre as mercadorias depositadas. Os títulos corporativos (também designados títulos de participação ou representativos de direitos sociais) são aqueles que incorporam um direito de “propriedade corporativa” ou participação social, ou seja, a posição jurídica complexa inerente à qualidade de membro de uma corporação social: é o caso das ações das sociedades anónimas e em comandita por ações”.[1]
[1] Idem, idem p.28-29
5.3. Títulos Nominativos, à Ordem e ao Portador
“Os títulos nominativos são aqueles que são endereçados pelo emitente a uma pessoa determinada e cujo regime de circulação é particularmente complexo, exigindo a intervenção do emitente do título e do seu titular: é o caso das ações (tituladas) nominativas de uma sociedade anónima, cuja transmissão requer declaração expressa a favor do adquirente, exarada por escrito no próprio título e registrada junto da sociedade emitente ou de intermediário financeiro que a represente (art. 102.º, n.º 1, do CVM). Os títulos à ordem são aqueles que, sendo também endereçados pelo emitente a pessoa determinada, circulam mediante endosso, ou seja, mediante declaração assinada pelo titular usualmente nas costas do título (“en dos”): é o caso da letra (art. 11.º, n.º 1, da LULL), da livrança (art. 77.º, n.º 2, da LULL), dos conhecimentos de depósito (art. 411.º do CCom) ou dos extratos de fatura (art. 3.º, §1, do Decreto-Lei n.º 19 490, de 21 de março de 1931), entre outros.
Os títulos ao portados são aqueles que não identificam o seu titular, circulando por mera tradição ou entrega real (o seu titular é o seu portador): é o caso das ações ao portador não depositadas (art. 101.º, n.º 1, do CVM) e das notas de banco”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 30.
5.4. Títulos Abstractos e Casuais
Os títulos abstratos são aqueles que são aptos a desempenhar uma pluralidade de causa jurídico-económicas subjacentes, não fazendo qualquer menção ao negócio fundamental concreto e permanecendo independentes relativamente a este: por exemplo, a letra de câmbio pode servir para titular uma dívida pecuniária emergente dos mais variados negócios subjacentes (v.g., o pagamento do preço numa compra e venda, a quantia mutuada num empréstimo, o acreditamento bancário numa abertura de crédito), não contendo, todavia, qualquer referência ao negócio concreto e não podendo o devedor invocar contra os seus portadores mediatos qualquer exceções fundadas nesse negócio (v.g., a compra é nula, a quantia não foi emprestada, a linha de crédito não foi aberta). Os títulos causais são aqueles que se destinam a realizar uma específica causa ou negócio típico predeterminados na lei, ficando, em maior ou menor medida, dependentes das vicissitudes do negócio subjacente: é o caso, por exemplo, das ações, obrigações, conhecimentos de carga ou conhecimentos de depósito, os quais, encontrando-se associados a um determinado negócio típico concreto (contrato de sociedade, de empréstimo obrigacionista, de transporte, de depósito), contêm necessariamente uma referência direta ou indireta a este, não permanecendo assim imunes às exceções dele decorrentes (v.g., se os estatutos de uma sociedade estabelecem restrições à livre transmissibilidade das ações ou preveem blindagens de voto, estas limitações são oponíveis a qualquer portador atual ou futuro das respetivas ações)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 31-32.
5.5. Títulos Individuais e em Massa
“Os títulos individuais são aqueles que são emitidos singularmente (um a um), sendo infungíveis (porque lhes subjaz uma relação fundamental própria) e destinando-se a ser tomados por uma só pessoa (ou várias, em regime de contitularidade): é o caso das letras, livranças, cheques, extratos de fatura ou conhecimentos de embarque, entre outros.
Os títulos em massa são aqueles que são emitidos massivamente (na ordem de milhares ou até milhões), sendo em regra fungíveis (porque possuem na emissão uma relação fundamental comum e apresentam características idênticas) e destinando-se a ser tomados por uma pluralidade de pessoas indeterminadas: é o caso típico das ações ou obrigações pertencentes a uma mesma emissão ou categoria, que podem ser postas à subscrição pública de um número indeterminado de destinatários (art. 279.º do CSC e art. 109.º do CVM)”.[1]
[1] Idem, idem. p. 33-34
6. Regime Jurídico
6.1. Conspecto Geral. A Tipicidade
“A emissão de um título de crédito origina o nascimento de uma relação jurídico específica – a relação cartular. Com efeito, a emissão de um título não representa um simples ato de documentação de um negócio ou relação jurídica fundamental, que lhe subjaz e o explica originando antes uma relação jurídica “a se” que passará doravante a ter uma vida e regime próprios. Ora, antes mesmo de nos ocuparmos da análise individual dos vários títulos de crédito existentes, importa descrever brevemente os aspectos gerais da natureza, constituição, exercício, circulação e extinção dessa relação.
Justamente em virtude da existência de um conjunto de títulos de crédito previstos na lei, questão prévia que se pode colocar é a de saber se vigora ou não neste domínio um princípio da tipicidade taxativa: serão admissíveis apenas os títulos expressamente previstos na lei (“numerus clausus”) ou, ao invés, também os títulos atípicos ou inominados criados ao abrigo da autonomia privada?
Muito embora a doutrina e a jurisprudência portuguesas sustentem tradicionalmente uma resposta negativa, propendemos a considerar que deverá aqui prevalecer um princípio geral de liberdade de criação de novos títulos: à regra cardinal do art. 406.º do CCivil, deverá ser permitido aos sujeitos jurídicos optar entre a emissão de títulos de crédito típicos ou atípicos. Trata-se, todavia, de um princípio geral e não absoluto: semelhante liberdade negocial encontrar-se-á sempre balizada pelos limites decorrentes da lei geral – “maxime”, inadmissibilidade dos títulos ou negócios cartulares com objeto ou fim contrários à lei ou ordem pública (art. 280.º do CCivil): v.g., o caso de novos títulos ao portador – ou de lei especial – por exemplo, a regra da tipicidade dos direitos reais (que veda a criação de títulos reais ou representativos de mercadorias inominados: cf. art. 1306.º do CCivil), as regras legais sobre o emitente (v.g., as que impedem a emissão de notas de banco ou títulos de dívida pública por outrem que não o Estado: cf. art. 6.º da LOBP), ou as regras relativas à circulação dos próprios dos títulos típicos (que impedem a emissão de títulos novos ou mistos em violação das mesmas, v.g., uma letra ao portador ou um cheque nominativo: cf. arts. 1.º, n.º 6, 2.º, n.º 1, da LULL, art. 14.º da LUC)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 35-36.
6.2. Constituição
“O título de crédito, e a conexa relação cartular, são criados através de um negócio jurídico unilateral: de acordo com a doutrina dominante, o ato constitutivo do título de crédito reveste a natureza de uma declaração unilateral de vontade dirigida pelo emitente a um sujeito determinável (art. 511.º do CCivil), sendo este determinado mediante a posse do título segundo a respetiva lei de circulação.
[…]
Os títulos de crédito não nascem “ex nihilo”, tendo a sua emissão, constitutiva do negócio cartular, normalmente subjacente um determinado negócio fundamental ou extracartular (v.g., venda, mútuo, doação). Por isso, a subscrição de um título de crédito pressupõe, via de regra, um acordo celebrado entre os respetivos emitente e destinatário justamente tendente à incorporação dos direitos e obrigações decorrentes desse negócio fundamental ou subjacente no documento abstrato: é a chamada “convenção executiva” (“pactum de cambiando”), a qual pode fixar para o negócio cartular uma função de pagamento (“solvendi”), de crédito (“credendi”) ou de liberalidade (“donandi”) relativamente ao negócio fundamental, pode ser inserida ou não neste negócio (v.g., cláusula negocial acessória), pode ser celebrada contemporânea ou posteriormente a ele (v.g., modificação ou estipulação ulterior), ou pode ainda revestir caráter expresso ou meramente tácito”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 36-37.
6.3. Conteúdo
[…]
“A emissão de um título de crédito, e o conexo nascimento da relação cartular, tem a si subjacente, por regra, um determinado negócio ou relação jurídica fundamental: se alguém saca uma letra ou um cheque à ordem de determinado tomador é porque lhe deve um preço, lhe concedeu crédito ou lhe pretende fazer uma liberalidade. Assim sendo, consequentemente, passam a existir entre aqueles sujeitos duas relações jurídicas paralelas mas distintas – a relação jurídica fundamental (“ex causa”) e a relação jurídica cartular (“ex cartula”) -, podendo então colocar-se o problema da coexistência e articulação entre ambas: nascida a relação “ex cartula” extingue-se a relação “ex causa”, ou, ao invés, subsistem as duas lado a lado? E, neste último caso, em que termos?
A resposta a tal questão dependerá, em primeira linha, dos termos da própria convenção executiva, ou seja, do acordo concluído entre os sujeitos da relação fundamental que define a função e conteúdo da própria relação cartular. Todavia, na falta de acordo expresso, não poderá deixar de entender-se que ambas as relações subsistirão lado a lado: nesse sentido concorre o art. 859.
º CCivil, que dispõe que “a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada”, além de que mal se compreenderia que a emissão de um título de crédito, visando por definição reforçar as garantias do crédito ou direito extracartular, conduzisse justamente ao resultado oposto”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 40-41.
6.4. Exercício e Circulação
“Os títulos de crédito, uma vez emitidos regularmente, dão origem a uma relação jurídica cartular, dotada de vida e disciplina própria, a qual é fonte de direitos e obrigações: ora, tais títulos são caracteristicamente documentos de legitimação – no sentido em que a posse do documento é condição necessária e suficiente para o exercício desses direitos e o cumprimento dessas obrigações – e documentos de circulação – no sentido em que os direitos e obrigações cartulares estão destinados a circular no tráfico jurídico-comercial.
Os títulos desempenham, por uma banda, uma função de legitimação ativa para o portador. Tal significa dizer que a posse de um título de crédito habilita ou legitima o respetivo portador a exercer o direito nele incorporado, mesmo quando aquele não seja o titular do direito: assim, por exemplo, a posse da letra, livrança, ou cheque, é condição indispensável para exercer o direito de crédito neles inscrito, cobrando o seu pagamento ao sacado (arts. 34.º, 38.º e 77.º da LULL, art. 28.º da LUC) ou transferindo-o para terceiro (art. 13.º da LULL, art. 14.º da LUC). Mas o inverso é também exato, já que o verdadeiro titular do direito está impedido de o exercer se não estiver na posse do documento: assim, por exemplo, no caso de conflito entre possuidor de uma letra, livrança ou cheque e aquele que destes tenha sido injustamente desapossado, prevalece o direito do portador atual, que não será obrigado a restituir o título exceto em caso de má-fé ou culpa grave (arts. 16.º e 77.º da LULL, art. 21.º da LUC).
Os títulos desempenham ainda, por outra banda, função de legitimação passiva para o devedor. Tal significa dizer que o devedor se desonera validamente da respetiva obrigação cartular mediante cumprimento perante o portador legítimo do título, não tendo de indagar sobre a sua verdadeira ou material titularidade: assim, por exemplo, o sacado ou obrigado que paga uma letra, livrança ou cheque a quem se apresenta como portador de acordo com a lei de circulação do título fica desobrigado, sem que lhe possa ser oposta qualquer eventual ilegitimidade material do credor (arts. 40.º, n.º 3, 77.º da LULL, art. 35.º da LUC).
Ou seja: se a legitimidade ativa dispensa o portador de provar a titularidade material do direito cartular e proíbe o devedor de a questionar, a legitimidade passiva dispensa agora o “solvens” de investigar tal titularidade e garante-lhe a natureza liberatória do cumprimento perante o “accipiens” ”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7. p. 43-44.
6.5. Extinção. A Reforma dos Títulos
“A extinção dos títulos de crédito ocorre com a extinção do direito neles incorporado, ou seja, por via de regra, com o cumprimento da prestação cartular (art. 762.º do CCivil), sem prejuízo de outros eventos extintivos especiais, tais como a prescrição (v.g., arts. 70.º e 71.º da LULL, arts. 52.º e 53.º da LUC) ou a ineficácia (resultante da lei, declaração judicial ou até de vontade do próprio emitente: v.g., as ações preferenciais remíveis do art. 345.º do CSC).
Por vezes, todavia, o direito cartular sobrevive à extinção física do próprio título de crédito. Como quaisquer outros documentos escritos ou em suporte de papel, estes títulos estão sujeitos à sua perda, destruição ou deterioração: no decurso da sua vida mais ou menos longa, circulando de mão em mão, é possível que o título se extravie ou perca, que ele seja destruído, ou que seja total ou parcialmente obliterado. Ora, desaparecido o título, desaparece o documento cuja posse é necessária para o exercício e a transmissão do direito cartular, colocando assim os seus titulares diante do problema de como recuperar tal direito. Justamente para obviar a esse tipo de vicissitude, a generalidade das legislações, inclusive a portuguesa, consagrou a figura da reforma dos títulos de crédito (“replacement”, “Amortization”, “ammortamento”).
A reforma dos títulos de crédito rege-se pelo disposto nos arts. 1069.º a 1073.º do CPC, que contemplam dois processos de reforma distintos para os títulos destruídos (art. 1069.º) e os títulos perdidos ou desaparecidos (art. 1072.º). Objetivo comum destes mecanismos processuais é o de permitir obter um novo título, isto é, um novo documento substitutivo do anterior que possibilite ao respetivo titular exercer os seus direitos cartulares: em princípio, são reformáveis ou reconstituíveis todos os tipos de títulos de crédito independentemente do seu regime de circulação (nominativos, à ordem, e ao portador). Sublinhe-se, todavia, que sempre que o título se tenha extraviado e o seu titular conheça o respetivo paradeiro (v.g., em caso de furto ou roubo), este deverá antes intentar uma ação de reivindicação contra o atual detentor (art. 1311.º do CCivil)”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7.p. 45-47.
7. A Desmaterialização dos Títulos de Crédito
“A enorme adesão granjeada pelos títulos de crédito, enquanto instrumentos de circulação indireta de riqueza, conduziu a uma proliferação massiva destes títulos ao longo do séc. XX, que tornaria a breve trecho incomportável o seu manuseamento e circulação físicos.
Com efeito, emitindo as sociedades comerciais todos os anos milhões de ações e obrigações, e colocando os Estados ou os empresários todos os dias em circulação biliões de títulos de dívida pública ou privada, está bom de ver que o sistema estava condenado a submergir diante desta descomunal quantidade de papel: a partir de determinado momento, o depósito, manuseamento e liquidação desses títulos tornou-se pura e simplesmente inviável, por demasiado burocrático, lento e dispendioso, com a inevitável e paradoxal consequência de aqueles deixarem de poder cumprir a sua função circulatória primordial. Em definitivo, pode dizer-se que os títulos de crédito acabaram por ser vítimas do seu próprio sucesso.
Esta evolução culminaria num fenómeno da desmaterialização ou desincorporação dos títulos de crédito (“Entmaterialisierung”, “dématérialisation”, “dematerializzazione”, “desincorporación”), traduzindo genericamente na progressiva substituição do seu suporte físico tradicional (documento de papel) por suportes de natureza informática ou digital (documento virtual ou eletrônico): ou seja, os direitos e deveres inscritos num título de crédito, outrora incorporados num documento em papel, passam a constar de um mero registo informático, passando a sua existência , validade e transmissão a processar-se em bases puramente eletrónicas”.
O relevo desta evolução para o conceito e a disciplina jurídica dos títulos de crédito é indiscutível, se bem que de alcance incerto. Depois da grande revolução iniciada na Idade Média com a materialização dos direitos em documentos, pode dizer-se que os títulos de crédito se encontram no vértice de uma nova transformação radical consistente na desmaterialização dos próprios documentos.
[…]
Dois cenários extremos podem prefigurar-se em abstrato. Um consistirá numa renovação dos títulos de crédito: segundo alguma doutrina, o conceito de título de crédito é dotado de elasticidade suficiente para albergar o fenómeno da desmaterialização, o qual representa essencialmente uma oportunidade para a revisitação e reconstrução dogmática deste instrumento juscomercial centenário. Outro, quanto a nós mais provável, consistirá numa crise dos títulos de crédito: com efeito, o fenómeno da desmaterialização é hoje perspectivado por muitos como “o canto do cisne” deste instrumento juscomercial, que coloca diretamente em cheque as traves mestras das suas função e disciplina e que prenuncia a perda do seu tradicional protagonismo em favor de novos instrumentos juscomerciais de circulação de riqueza, típicos de atual “paperless society”, designadamente os chamados “instrumentos financeiros” e os “valores mobiliários”.[1]
[1] ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7.p. 47-50.
8. Títulos de Crédito e Títulos Executivos
“Estreitamente relacionado com esta questão, outro problema se suscita, a concitar a nossa análise.
O problema foi bastante debatido no Direito anterior, mas carece de ser revisto à luz do atual art. 703-1, al. c), CPC (v infra, nº 62).
No domínio da nossa legislação pregressa, os títulos de crédito, que obedeciam aos requisitos enunciados na então al. c) do art. 46 CPC, constituíam, em princípio, títulos executivos.
Extinta, no entanto, a obrigação cartular abrangida pela prescrição, perguntava-se se o documento respetivo perderia, por esse facto, a sua executoriedade ou se, pelo contrário, deveria considerar-se ainda como um título executivo.
Na doutrina, o Conselheiro EURICO LOPES-CARDOSO sustentou ardorosamente a tese negativa, com o fundamento de que o título de crédito nunca provará, por si só, a relação fundamental. O mais que poderá provar será apenas o facto da emissão.
Este entendimento, porém, que ainda tinha tido a fortuna de influenciar o ac. da Relação de Lisboa, de 7-1-1974, permaneceu justamente isolado nas letras jurídicas nacionais.
Efetivamente, prescrita a obrigação, deixaríamos de estar em presença de um título de crédito e nem poderia pôr-se já a questão da executoriedade do crédito cartular correspondente – mas nem por isso desapareceria o papel que, muito embora já não fosse um título de crédito, constituía ainda então, decerto, um escrito particular do qual constava a obrigação de prestação de quantia determinada e a assinatura do devedor.
Ele não documentava, é certo, a inteira obrigação fundamental – mas nem isso parecia então preciso para poder valer como título executivo, nos termos da facti species constante, então, da al. c) do art. 46 CPC; bastava, para tanto, que dele constasse, como efetivamente constava, a obrigação de pagamento de uma quantia determinada e estivesse assinado pelo devedor executando.
Se estes requisitos se configuravam num escrito, ele não seria um título de crédito e podia mesmo ter deixado de sê-lo, em face da prescrição cambiária, não deixaria por isso de constituir um título executivo da obrigação de pagamento literalmente expressa nele.
Na mesma ordem de ideias, outro tanto nos parecia de entender também naqueles casos em que, faltando embora ao título de crédito, p. ex., a uma letra de câmbio, os requisitos formais necessários para que valesse juridicamente como tal, subsistissem ainda os exigidos para poder valer como um escrito particular compreendido na descrição legal do título executivo da referida al. c) do art. 46 CPC.
A jurisprudência ainda recente ia, contudo, no sentido oposto.
Assim:
I – A letra de câmbio só integra título executivo, traduzindo então, a constituição de uma obrigação cambiária, quando, ao ser emitida, sejam observados todos os requisitos que condicionam a sua validade e que se acham inseridos nos dispositivos que integram a LULL.
II – Assim, enquanto e apenas como simples “quirógrafo” a letra, não pode, servir de base à execução.
III- A reforma, do C.P.C., de 1995, ao ampliar o elenco dos títulos executivos, na alínea c) do seu artigo 45, não alterou a dita LU, nem buliu, pois, com o regime aí consagrado.
SUPREMO, 24-01-2002 (ITIJ, Processo Nª SJ200201240041841).
Posteriormente, porém, já se julgou, e bem, deste modo:
– Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiram a aplicação do regime de abstração substantiva previsto na respetiva LU podem ver usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respetiva emissão.
SUPREMO, 07-05-2014 (IGFEJ, Processo Nº 303/2002, P1, S1)”.[1]
[1] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 72-74.
9. Diferentes Categorias da Circulação dos Títulos de Crédito
“A teoria dos títulos de crédito costuma estudar a seu respeito diferentes categorias de circulação.
Antes de mais, há naturalmente que contar com a sua circulação própria, também dita regular; mas, para além dela, outras espécies podem verificar-se, na prática: a circulação imprópria, a circulação limitada e, até, uma circulação anómala ou irregular.
Na realidade, a existência de um título de crédito, idóneo para o transporte, consigo, do direito cartular, segundo regras próprias, não impede que em certos casos venha a realizar-se a transferência do direito nele representado de acordo com os princípios do Direito comum, ou porque essa é a vontade das partes (p. ex., letra “não à ordem” – art. 11, 2ª al., LULL) ou porque a aptidão do título para a circulação caducou (p. ex., sucessão hereditária relativamente a títulos nominativos ou à ordem). Em todos estes casos estamos em presença do que se denomina comumente de circulação imprópria.
Neles, o adquirente não obtém a titularidade do direito cartular através de um negócio de aquisição da propriedade do título, mas sucede apenas ao titular anterior. Na transmissão inter vivos, regem as normas da cessão de créditos (cf. citados arts. 11 e 20 LULL, com referência ao art. 588 CC); na transmissão mortis causa, os preceitos próprios do direito das sucessões.
O título de crédito, deixando de estar atido à forma cambiária de circulação, perderá então, segundo a melhor doutrina, a natureza de verdadeiro e próprio título de crédito.
A circulação limitada interessa unicamente aos títulos transmissíveis por endosso em que se insiram certas figuras especiais como o endosso por procuração ou o endosso pignoratício.
A circulação anómala, também dita irregular, é a que ocorre quando o título entrou em circulação através de um acordo de transmissão inválido ou mesmo contra a vontade daquele que figura ou se apresenta como seu proprietário (furto, falsificação de documentos de transmissão, circulação de títulos perdidos, etc.).
A circulação própria visa obter uma rapidez e simplicidade de transmissão e de movimentação (não isentas de um mínimo de segurança) que os quadros do Direito comum, mesmo nas modernas formulações da cessão de créditos ou da cessão da posição contratual, não podem proporcionar, <<incorporando>> um extrato unilateral da relação fundamental num título e fazendo-o circular unido a ele pelas regras fundamentais da transmissão das coisas móveis a que o título, como res, efetivamente pertence”.[1]
[1] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 74-75.
10. Circulação Regular e Circulação Anômala
Na verdade, a transmissão do próprio título, em si, não compreenderá unicamente aquelas formas, ditas leis de circulação que, segundo as diversas categorias de títulos (ao portador, à ordem, nominativos), conferem a investidura formal que constitui a sua posse ad legitimationem, pois há ainda, na base do circuito e participando imprescindivelmente de cada circulação da simples posse, um acordo de transmissão, geralmente designado pela expressão de contrato de negociação (Begebungsvertrag, contratto di rilascio), que constituía juxta causa traditionis e tem precisamente por objeto a transmissão da propriedade do título segundo normas análogas às da transferência das coisas móveis e, com ela, da titularidade do direito nele “incorporado”.[1]
[…]
Sendo assim, porém, havendo uma dupla transmissão do mesmo título a diferentes pessoas, perguntar-se-á qual delas deverá prevalecer. Prevalecerá o primeiro acordo de transmissão ainda que o segundo adquirente esteja de boa-fé e tenha sido ele a beneficiar da entrega do título?
Aqui, impões-se-nos entrar na análise da chamada circulação anómala (ou irregular) dos títulos de crédito, de que se fala quando um deles entrou em circulação através de um acordo de transmissão que é, em si, inválido, ou mesmo quando a circulação ocorre diretamente contra a vontade daquele que figura como seu proprietário (furto, falsificação de documentos de transmissão, circulação de títulos perdidos, etc.).
[…]
Nas diversas legislações mais importantes, tanto para a transmissão de coisas móveis como para a dos títulos de crédito, tem precisamente aquela que costuma definir-se pelo prolóquio “posse de boa-fé vale título”. No Direito português, embora o Código Civil vigente, à imagem do anterior, só reconheça, para a transmissão das coisas móveis, o princípio posse vale título em termos muito limitados (arts 409-2 e 1299), a verdade é que as Leis Uniformes, que vigoram na ordem interna, estatuem para as letras, livranças e cheques, esse mesmo princípio em termos amplos.
Dispõe, com efeito, a 2ª al. do art. 16 LULL: “Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente [por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco], não é obrigado a restituí-la, salvo se a adquirir de má-fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave”.
Esta norma, que é extensível à livrança (art. 77 da Lei), que foi reproduzida para o cheque na respetiva Lei Uniforme (art. 21) e deve ainda aplicar-se analogicamente a todos os restantes títulos de crédito, consagra plenamente e sem reservas a regra <<posse de boa fé vale título>>.
Através dela, o portador que adquire a posse ad legitimationem de um título de crédito, de boa fé, mesmo por uma aquisição a non domino, paralisa, portanto, o direito do anterior adquirente.
Temos então uma circulação anómala, mas eficaz.[2]
[1] Idem, idem p. 76-77
[2] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 79-80.
11. Reforma de Títulos de Crédito
Os títulos de crédito estão, como qualquer escrito, atidos a serem destruídos ou perdidos, colocando os respetivos titulares perante o problema de não poderem exercer, assim, os direitos neles incorporados, sem o mínima hipótese de recurso, nas relações mediatas, ao direito fundado na relação com base na qual o título foi criado.
Para evitar semelhante desastre, as legislações dos diversos países, já que o escrito é mero veículo do direito que incorpora, admitem, mais ou menos amplamente, a suscetibilidade de se lançar mão da reforma dos títulos destruídos ou perdidos.
No nosso Direito positivo, essa possibilidade era já concedida no Código de VISCONDE DE SEABRA, de 1867, o qual no seu art. 2429, expressamente afirmava que “os instrumentos, que se extraviarem ou perderem, poderão ser reformados judicialmente”.
O Código de Processo, de ALEXANDRE SEABRA, não previa um processo especial para este efeito, mas expressamente mandou aplicar à reforma de instrumentos o processo ordinário (art. 586).
Em 1888, o Código de VEIGA BEIRÃO proclamou, no seu art. 484: “as letras, ações, obrigações e mais títulos comerciais transmissíveis por endosso, que tiverem sido destruídos ou perdidos, podem ser reformados judicialmente a requerimento do respetivo proprietário, justificando o seu direito e o facto que motiva a reforma”.
No seguimento desta previsão legal, primeiro os três Códigos de Porcesso Comercial (de 1895, de 1896 e de 1905) e, depois, o Código de Processo Civil, de 1939, adjetivaram esta disposição.
Entretando, o Código Civil em vigor veio estabelecer e continua ainda hoje a dispor, no seu art. 367, que “podem ser reformados judicialmente os documentos escritos que por qualquer modo tenham desaparecido”.
Este preceito foi adjetivado, em todas as formulações anteriores à atualmente em vigor do Código de Processo Civil: nos seus arts. 1069 ss, como aliás já o tinha sido na formulação primitiva, de 1939, então nos arts. 1068 a 1081.
A reforma de títulos de crédito não é, pois, matéria cambiária, mas de Direito comum, aplicável, aliás, a qualquer documento escrito.[1]
[1] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6. p. 81-82.
12. Títulos de Crédito no Direito Brasileiro
No direito Brasileiro, os títulos de crédito estão disciplinados nos artigos 887 ao 926 do Código Civil e seguem a regra da teoria geral dos títulos de crédito, sendo entendido como o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido e somente produz efeito quando preenche os requisitos da lei.
O crédito, como já visto é de fundamental importância para a implementação das mais diversas atividades econômicas.
As características são similares, ou seja, a cartularidade ou incorporação, a autonomia, a literalidade, a circulação, a solidariedade, entre outras, que os tornam indispensáveis para a constituição do título.
No Brasil temos como títulos cambiais genuínos ou básicos, a LETRA DE CÂMBIO e a NOTA PROMISSÓRIA, e os chamados cambiariformes, tais como o CHEQUE, o WARRANT, CONHECIMENTOS DE DEPÓSITOS, CONTRATOS BANCÁRIOS, DUPLICATAS, entre outros.
No que tange a duplicata, trata-se de título vinculado a uma operação mercantil de compra e venda, ou de prestação de serviços. Assim temos a DUPLICATA MERCANTIL e a DUPLICATA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, nos termos da Lei nº 5.474/68. É um título emitido exclusivamente em razão da venda a prazo de mercadorias ou de prestação de determinado serviço para cobrança futura.
A emissão de tais títulos sem a correspondente emissão de nota fiscal, constituiu-se em crime de estelionato nos termos do art. 172 do Código Penal Brasileiro[1].
[1] Art. 172 – Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá aquêle que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas. (Incluído pela Lei nº 5.474. de 1968)
Conclusão
No presente trabalho relativo a títulos de crédito, suas características e tipologia, buscou-se uma abordagem de natureza investigativa, sobre a importância do direito cambiário nos negócios comerciais, principalmente na facilitação da circulação da riqueza.
Fez-se uma análise da origem histórica e a evolução dos títulos de crédito no direito Português.
Como visto, no desenvolvimento dos títulos de crédito foram surgindo princípios jurídicos e características que revestiam de legalidade os respectivos títulos, possibilitando a sua circulação, substituindo nos pagamentos, a moeda, por lançamentos de débito ou crédito.
Tal possibilidade, ou seja, a criação e circulação de títulos de crédito facilitou a atividade econômica, como instrumento de pagamento e de facilitação nos negócios comerciais.
Assim, os títulos de crédito, ao longo dos tempos até os dias de hoje, foi e é sem dúvida alguma um importante instrumento nas relações comerciais no mundo inteiro, facilitando sobremaneira o comércio, tanto internamente como entre países.
A difusão dos títulos de crédito mudou a constituição econômica da sociedade, constituindo-se num instrumento típico da economia moderna e de facilitação de negócios mercantes, inclusive fomentando as operações bancárias, com a criação dos mais diversos tipos de títulos de crédito bancários, que, ao longo dos tempos criou-se títulos com grande alcance social e econômico, como, a livrança, a letra de câmbio e o cheque.
Bibliografia
ANTUNES, José A. Engrácia, In Os títulos de crédito uma introdução. 2.ª ed. rev. at., Coimbra Editora, 2012. ISBN 978-972-32-2095-7.
FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, In Títulos de Crédito. 2ª ed. rev. actual. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2015. ISBN 978-972-40-5885-6.
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO – Lei 10.406/10.01.2002